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Menos progresso, por favor

 

Depois de uma série de mudanças de endereço, há mais ou menos quatro anos me estabeleci em um lugar só, aqui em Curitiba. Um bairro bacana, tranquilo, perto o suficiente do centro para ir caminhando e longe o suficiente para um amigo estacionar o carro na rua sem se preocupar muito.
Claro que o maior motivo de vir morar aqui foi o aluguel, que na época era uma pechincha. Apesar de ser um dos cartões-postais da cidade, o Jardim Botânico - a duas quadras da minha casa - demorou a ser descoberto pela especulação imobiliária.
Meu aluguel mais do que dobrou desde que me mudei para cá, mas a paixão pelo bairro pacato foi mais forte do que o buraco no bolso.
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Li no jornal, hoje, que vão construir um shopping center imenso quase na esquina de onde eu moro. Fiquei triste. Vai ser prático? Vai. Vai ter um hipermercado imenso em vez de um supermercado humilde em que eu pergunto pra operadora do caixa se o filho dela melhorou de saúde? Também.
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Não entendo porque as pessoas enxergam shopping centers com tanta boa vontade. São caixas imensas de concreto e vidro, em que você não sabe se é dia ou noite - a não ser que seja funcionário, aí você sabe que é noite (e também que você não tira dois dias seguidos de folga do seu emprego de salário mínimo há quase um ano).
Eu gosto de morar num bairro que muita gente nem conhece o nome. Eu gosto de precisar caminhar cinco quadras para comer cachorro-quente numa barraquinha que está quase falindo por falta de movimento.
Enquanto isso, o novo shopping vai ser construído a toque de caixa: a obra toda deve ser concluída em menos de cinco meses. Vai gerar muito emprego, que é bacana. Vai ser mais um megatemplo do consumo, que é menos bacana. Pelo menos não é uma megatemplo da Universal, que é muito bacana e pelo menos coloca as coisas em perspectiva.
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No processo de construção do shopping, também vão demolir uma farmácia, que tem uma atendente com distúrbio bipolar adorável.
Num dia ela me interrompeu a compra pra dizer: "Você tem certeza que vai levar essa caixa de bombons da Arcor? Eles são uma bosta."
No outro, ela me falou que é muito rica e faz medicina. No outro, ela me abraçou no ônibus e perguntou se eu não tinha me arrependido de comprar aquelas bostas de bombons. No outro, encontrei ela na rua, chorando e com o rosto completamente rabiscado com batom vermelho.
Uma figura. Não vai sobreviver num shopping center.
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Já consigo imaginar a inauguração. Adolescentes gritando, mães segurando bebês de colo que choram e tentando acalmá-los dizendo "Vou meter a mão na sua cara", filas imensas em lojas de fast food, o cenário todo estéril, modernoso e padronizado. Tudo para a fazer o povo consumir se sentindo como se estivesse nos Estêites.
Tudo muito sem graça. Posso fazer um protesto? Menos progresso, por favor. Menos McDonalds, mais amor.


A Fraude e a Foca

 

Eu sou um péssimo nadador, mas persistente o suficiente para acreditar que, eventualmente, vou ser enquadrado como ruim ou, com sorte, medíocre. Uma vez tentei fazer uma travessia a nado no mar. Não dei conta de terminar o feito: nadei quatrocentos metros rumo à linha de chegada antes de entrar em pânico. Achei que não seria capaz de completar a prova e nadei os mesmos quatrocentos metros para voltar para o lugar de onde saí.
A prova era de setecentos e cinquenta metros. Seria menos trabalho terminar a prova do que perder tempo entrando em pânico e voltando.
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Seja por persistência ou chatice, voltei ao mar para tentar nadar uma segunda vez. Pleno inverno. O céu de Santa Catarina estava nublado e a água, geladíssima.
Não era, definitivamente, as condição ideal pra nadar. Enquanto criava coragem com os pés na areia, olhei para o lado e vi algo que parecia ser um cachorro.
“Que gozado, um cachorro nadando no mar!", pensei. “Se um cachorro consegue nadar nesse frio, eu também consigo”. Encorajado pelo cachorro-herói, segui em frente.
Braçada após braçada, fiquei lado a lado com meu colega-cão. Comecei a prestar mais atenção nele. “Que bigode esquisito ele tem”, pensei. “Que cachorro mais gordo”, pensei. “Que nadadeiras estranhas!”, pensei.
Foi quando caí em mim: aquilo não era um cachorro. Era uma foca.
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Ou pelo menos essa é a história que eu conto para todo mundo.
Pois então, todo mundo: saibam que eu não nadei com foca nenhuma. A história verdadeira é que, algumas horas antes de entrar no mar para nadar, estava caminhando pela orla com uns amigos e vi o bicho preto-petróleo brincando na água.
Sim, eu pensei que era um cachorro. Sim, eu levei um susto quando vi que a água estava gelada a ponto de ter uma foca nela. Não, eu não nadei com uma foca. Infelizmente.
Eu sou uma fraude.
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Acho que a parte mais triste da história não é tanto o fato de eu ter distorcido a verdade, mas sim a razão pela qual eu o fiz. Por mais que, dessa vez, eu não tenha tido um momento de pânico enquanto nadava, como da primeira vez que tentei nadar no mar, isso me pareceu pouco. Eu não me contentaria se eu chegasse de viagem e, ao encontrar com o porteiro do prédio, a seguinte conversa acontecesse: - E aí, como foi na praia? - Genial! Acredita que eu nem entrei em pânico?
Ele ficaria sem entender nada: - Uhn, que... bom, né? - Ótimo! - eu diria. - Quantos quilômetros você nadou?
Minha vez de ficar constrangido: - Quilômetros? Eu nadei setecentos... metros.
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Inexpressivo demais, não? Eu posso ser um péssimo nadador, mas jamais admitiria ser pouco expressivo. O que explica o surgimento da história da foca. E esse é meu mea culpa. Sou um corrupto. Me corrompi e inventei uma fantasia em alto mar, eu e uma foca, para salvar minha história de ser desinteressante.
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Para concluir: quando cheguei de viagem, fui procurar imagens na internet para ver se o bicho com quem não nadei era realmente uma foca. Descobri que, na verdade, aquilo se tratava de um leão marinho.
Ainda assim, contei a história com uma foca como protagonista. É minha culpa que um leão-marinho não soa bem? É um bichinho adorável, mas inexpressivo demais para fazer juz ao seu título de leão. Precisei reescalar o papel para a história ficar melhorzinha.
Não adianta, eu sou irrecuperável. Me botem na cadeia antes que seja tarde